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segunda-feira, 23 de abril de 2012

um flash: sinto sua falta.


Fazia calor a última noite que falei com ele.
Falamos sem preocupação nenhuma e rimos, porque eu não achei que ele fosse realmente parar de existir. Na verdade nunca achei que morte existisse mesmo.
-Você acha que vai doer?
-O que?
-Morrer. Eu acho que dói.
-Doeria se eu tivesse que me preocupar. Só vai doer fisicamente, os médicos disseram que é uma das mais dolorosas.
-É estranho isso né? Parar de existir.
-É. Mas existir também não faz muito sentido pra mim.
-Você tá planejando seu velório?
-Uhum, não quero ninguém falando 'ah, paguei tal coisa pra ele' não.

E eu acho que doeu, mesmo.
Eu queria ter falado o quanto eu admirava ele, o quanto o mundo iria perder, o quanto eu estava com calor aquela noite e como isso é um tanto quanto surreal.
Pra quê tantas leis sociais aprendidas? Pra quê todas as fórmulas matemáticas? Pra quê aprender a dirigir? Morrer antes dos 20 não é um bom plano, sabe.
Ainda existem rastros seus no mundo. E pra quê?

Ele acordava todos os dias as 4:45, sem ter muita certeza do porquê. Era algo sobre um emprego que disseram que uma vez ele teve, e que tinha deixado o hábito. Levantava da cama e comia qualquer coisa que não gostava da mesa posta por uma mulher que ele não lembrava muito bem quem era. Nem fazia questão. A casa era dele, ele sabia, mas se a mulher o atrapalhava, ele nunca percebeu. Que ela fique então. Nas primeiras horas do dia fazia alguma coisa pouco produtiva das quais se esqueceria mais tarde. As vezes aparecia um cachorro [que ele também não sabia de onde veio]. O cachorro ele curtia. As vezes dividiam um baseado. O cachorro também esquecia e não parecia ser muito encanado, igual as poucas pessoas que o cercavam. Ele nunca entendeu porque elas eram assim afinal, e se entendeu, já nem lembra.
Ele só tinha uma coisa
fixa
na memória ridícula e falha.
Beatriz.
Beatriz era uma mulherzinha pequena e sardentinha das mãozinhas quentes e cabelos cacheados. Ela tinha cheiro de baunilha e alguma coisa meio cítrica.
Ele deitava toda noite sentindo esse cheiro, sorria, dava boa noite para a Beatriz e dormia.
Ninguém nunca entendeu muito bem como ele podia lembrar dela.
Mas ele não lembrava. Era mais que isso. Ele respirava baunilha, sentia cada milímetro do corpo sardento grudado no dele, tocava os cachinhos quando quisesse e tinha certeza que as mãozinhas quentes ainda estavam envolta dos seus ombros.
Boa noite, Beatriz.