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sábado, 27 de fevereiro de 2016

Descobri que você existia (ou entrava em processo de começar a existir) no banheiro do meu bar favorito. Vi dois traços rosas no teste de farmácia e pensei que estivesse enxergando duplicado. Abri a porta e perguntei para a estranha que era a próxima da fila a quantia exata de traços rosas. Dois traços rosas, ela disse, dois.
Saí do banheiro cambaleando de bêbada e de grávida. Não deixava-me esbarrar em ninguém porque me senti tão preciosa. Como um ovo de cristal bem fino que pudesse quebrar e espalhar toda a placenta e líquido amniótico pelo bar, e eu, quebrada, veria um pequeno bebezinho flutuando na cerveja e sangue do chão, escorrendo devagar, e o dono do bar ficaria tão bravo. Eu preciosa, receptáculo frágil, tão mais sagrada do que eu mesma sabia, andando entre pessoas cheias de braços, prontas para me tocar a qualquer momento. Nos olhos delas eu via linhas rosas claro, duas, finas, aparecendo devagar, dizendo sim, grávida, sim, duas linhas, sim, bebê, ou sim, aborto. Andei como quem paira até a saída, pisando leve pra não machucar, com o teste e as linhas na mão, pingando xixi, me sentindo cheia de outro corpo.
Sentei na calçada. Levantei rápido quando lembrei que ela estava suja demais para alguém que agora era tão preciosa como eu. Fiquei em pé na rua pensando no colo do meu útero abrindo, abrindo, até ficar grande o suficiente pra dar passagem pra sua cabeça, que chegaria à minha vagina e deslizaria para o mundo. Para uma vida extrauterina que você não pediu, mas eu, teu carrasco, tua mãe, te dei. Pega essa vida, bebê. Sai do quentinho e do bom. Respira esse ar que todo mundo já respirou. O cordão eu romperia com violência, quem sabe até com os dentes, pra dizer "olha, bebê, agora é cada um por si."
Me imaginei olhando seu rosto. Me perguntei se eu te amaria logo. Ou se eu te veria como um pedaço das minhas entranhas. Ou se eu te veria como um parasita que passou os últimos meses comendo minhas entranhas. E se você me amaria.
Então pensei em te interromper. Ter uma conversa franca contigo e dizer "bebê, você não pode nascer. Vou tomar esse comprimido e vou interromper o que você está fazendo aí. Mas vai ficar tudo bem porque você não tem alma ainda." e terminar o seu processo que, eu sei, você estava se empenhando tanto, trabalhando duro mesmo pra existir.
Optei pela segunda história.

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2016

eu me celebro

eu não sou auto-imune. eu me respeito.
eu aceito as receitas que eu erro. eu aceito as hipocrisias que não combato. eu me celebro, eu me respeito, eu me aceito.
eu enfeito meu corpo, passo tinta nos olhos, penduro coisas no pescoço, faço furos e coloco adornos. não pra esconder mas pra celebrar. eu sou a minha festa. meu corpo é meu relicário. meu objeto de ritual.
eu escuto meus órgãos. escuto o sussurro do sangue correndo.
eu me perdoo. eu não reprimo.
eu sou maior que o sol. eu ocupo toda a sala. eu sou todas as coisas. eu vibro. eu absorvo.
eu me desenho. eu vejo meu sangue pingar. eu tenho sangue.
eu celebro o que sou.