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terça-feira, 6 de janeiro de 2015

Você é grave, grave. E olha como quem viveu essa e outras mil vidas. E fala como quem fala apenas para botar na frase as entrelinhas.
Você parece ser toda entrelinhas. Você não é mulher, é um rio manso. Claro na superfície, mas, de tão fundo, turva. E ninguém enxerga teu chão.
Quando Machado chamou os olhos de Capitu de ciganos, fez isso porque não te conhecia. Cigana.

Carta ao meu nunca gerado filho

Não vou te pedir desculpa. Um útero vazio do seu corpo em formação não poderia te doer, porque você não-é.
(você não-é e eu te conheço bem.)
Não que eu fosse uma mãe ruim; seria crua. Seria mãe como é a maré, que, por amor, toda noite se faz cheia e mata milhares dos seus filhos, deixando-os ao longo da areia da orla, lindos, mortos. Pra que não atrapalhem a marcha desapressada da vida (nem mãe nem filhos.)
Não pense que nunca quis te existir. Ao contrário, quero ainda agora. E cumprir atenta cada etapa; te conceber, abrindo meu corpo pra que o mistério da existência se faça. Te gestar, sentir você aumentar e ocupar espaços que costumavam ser meus. Sentir você me movimentar de dentro pra fora com a força dos seus pés contra as paredes do meu ventre, sua casa. E ver meus fluidos te alimentarem; antes pelo cordão que nos unia, e então, pelos meus seios, quando você decidir sair do meu interior. E você faria isso me machucando muito, muito, quando nós dois seriamos sangue e tantos outros líquidos, amnióticos e não. Mas com qual facilidade te perdoaria - a vida não é doce.
Assim te veria; não como alguém que me ama, mas como alguém que me é. E por você sentiria um amor que é sem sutileza ou maciez.
Mas daí por diante já não saberia. Quando você começasse a me perguntar coisas, em lugar de sanar as dúvidas eu as compartilharia. E não te ensinaria nada porque te julgaria sábio. E te criaria sem criar, com uma inconstância que é minha.
Espero que entenda. (e sobretudo, que encontre ventre.)
                             Com amor. (sim, sim.)